sábado, 8 de setembro de 2012

Temos nosso próprio tempo

Quando é a hora certa de dormir e deixar tudo pra depois? De perceber que o seus planos não deram certo hoje e tentar relaxar e esquecer o futuro por dois segundo até pegar no sono?
Era dia, algum feriado, provavelmente 7 de setembro. Cícero não tinha certeza do número do dia, muito menos do ano, só sabia que era uma sexta feira. Era o pior dia da semana, os abrigos públicos estavam sempre cheios as sextas. O jovem senhor, de apenas 34 anos, teve que parar sua tradicional coleta de alimentos desperdiçados e materiais recicláveis pelas lixeiras da cidade mais cedo que o comum, 2 horas da tarde foi seu limite, conseguiu 7 folhas de papelão, algumas latinhas amaçadas e duas salsichas podres. Mesmo estando em plena meia idade, não tinha mais a mesma disposição de antes, não aguentava passar um dia todo a procura do que comer, o sol já ofuscava suas vistas, maltratadas por alguma doença adquirida lentamente, provavelmente catarata, mas Cícero não fazia ideia do que esse nome significava.
O dia de trabalho lhe rendeu 2 reais e 42 centavos, que foram devidamente arredondados pra baixo. Cícero reclamou, o atendente da cooperativa de reciclagem o ignorou. Bom, com o dinheiro de hoje ele comprou um biscoito de um real, sobrou 1 e 40. Foi andando em direção lado norte da cidade, e pensando, ontem lhe sobraram 2 reais e 15 centavos, então daria 3 e 55, e era tudo que tinha pra viver mais um final de semana. A cooperativa não abre nos finais de semana e ele não tem onde guardar o papelão acumulado no sábado e domingo, até já tinha tentado esconder certas vezes, mas sempre foi roubado por outros catadores durante o sono. Ele sabia que nessa guerra chamada vida estava só.
Finalmente Cícero chegou ao abrigo, já eram por volta das 4 horas da tarde, a fila estava longa e ele sentiu um pouco de medo, não poderia perder a vaga, precisava passar a noite lá. Não havia outra alternativa. Esperou silencioso na fila, com as mãos no bolso, apalpando o que de mais tinha de precioso naquele momento, seus 3 e 55, era uma nota de 2 e o restante moedas que variavam entre 5 e 50 centavos. Seu passatempo foi tentar descobrir os valores das moedas apenas pelo tato. Funcionou bem, pois parecia que havia passado apenas 15 minutos e o agente já estava a abrir a porta do abrigo, ou seja, já eram 6 horas da tarde.
O agente gritou para ordenarem a fila de acordo com a chegada, e que pra hoje haveriam apenas 27 camas disponíveis. Todos do meio da fila em diante ficaram apreensivos, normalmente eram 31 leitos. Ninguém queria passar a noite sem um teto. É ótimo dormir à luz das estrelas por um dia, quando se tem um teto e uma cama quente nos outros, Cícero sabia como era péssimo não ter onde dormir, escolher uma calçada e sentir aquele frio intenso e congelante sobre seus dedos que não o deixava descansar. A fila começou a andar, e o agente a gritar: um, dois, três, ..., quinze, dezesseis, .. vinte e sete. Cícero seria o vinte e nove, mas hoje não, mentalmente amaldiçoou o mundo e se virou. Foi embora, sabia que não adiantava reclamar, tudo que conseguia imaginar era que se não gastasse seu  tempo reclamando sobre a falta dos dois centavos na conta de hoje provavelmente dormiria sobre um colchão essa noite.
Sem rumo o homem começou a andar, andou por horas. Se deparou com um bar, estava cheio, contrastando o resto da rua deserta. Viu um grupo de rapazes e decidiu arriscar, pediu uma ajuda, uma esmola. Os rapazes o ignoraram e continuaram a beber. Cícero continuou a andar pela rua do bar, achou uma parada de ônibus, estava escura, ótima pra dormir. Usou o jornal velho que tinha achado, estava um pouco molhado, mas já já secaria, pensou ele. Tentou ser otimista. Tentou lembrar de bons dias. Não conseguiu.
Cícero fechou os olhos e dormiu.
Acordou sentindo algo estranho, alguém jogava alguma coisa nele, algo gelado. Era aquele mesmo grupo de jovens do bar que rejeitaram dar alguma esmola pra ele, que sequer ouviram o que ele tinha a pedir. Derramaram uma garrafa de vodca nele, ela estava gelada, muito gelada. Cícero despertou com um susto e logo que abriu a boca pra protestar levou um soco no queixo. O jovem que o abateu disse: toma otário. Enquanto outro gritou: Drogado do caralho. outro filmava tudo. Enquanto o último apenas via tudo isso. Eles esperaram o catador recuperar os sentidos e começaram a chutá-lo por todo o corpo,mas não no rosto, não queriam ele inconsciente ainda. Cícero urrava de dor, e os jovens continuavam a bater, e chutar. Passado dois minutos de pancadas o jovem que permanecia calado gritou: parem!
Ele foi ao encontro do senhor, que agora estava repleto de hematomas e sangue pelo corpo, colocou a mão em seu bolso e tirou seus 3 e 55. Pegou a nota de 2 e jogou as moedas num boeiro na rua. Cícero chorou. A sessão de pancadaria continuou por mais alguns minutos. O Jovem que filmava não conseguia se conter entre risos e brados sobre morte aos drogados. O catador estava imóvel, não conseguia mais mexer nenhuma parte do corpo, embora tivesse plena consciência do que estava acontecendo. O jovem calado, continuava de boca fechada e olhava o senhor nos olhos enquanto apanhava. O que estava filmando se assustou, achou que seus amigos tinham matado o senhor. No desespero puxou do bolso um esqueiro e ateou fogo no catador. Cícero pode sentir o fogo o consumir, a sua respiração ficava cada vez mais difícil,o ambiente cada vez mais quente. Ele morreu naquela noite, mas sua alma certamente viverá para sempre. Os jovens tiveram mais muitos anos de vida, mas seus espíritos abandonaram seus corpos naquele momento. 

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